sábado, 29 de setembro de 2012

Sem imagem


O arrastar daquela corrente, lembra-me o de outras correntes de prisioneiros que a Pide tinha em Pemba – Moçambique, nos anos sessenta.
Ficava a prisão mesmo ao fundo da rua onde morava.
Homens subiam a estrada com carga nos ombros e nos tornozelos, estes, já com anteriores cicatrizes e grilhetas que tinham cabido noutros tornozelos. Grilhetas grossas, escuras com marcas de outras macerações de sangue, pele e carne humana.
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Há homens que condenam assim homens.
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Esta corrente que hoje oiço é a do cão do vizinho, não é ao fundo da rua, é mesmo ao lado. Terá o animal talvez um ano e pouco mais, foi condenado assim desde pequenino.
A primeira vez que o vi, já trazia uma coleira que lhe apertava o respirar e esganava o ladrar, mas na inocência brincava e a felicidade deixava-o ser assim, não tinha escolha.
Foi-se apercebendo o animal, da existência de homens e outros animais, que ele pouco vê, mas ouve, porque das três paredes que o cercam feliz ele é, por não ter uma quarta que o aprisione como aos prisioneiros.
O seu horizonte é limitado, mas ainda vê alguns pássaros e um gato que ele deixa passar mesmo ao largo, porque é o amigo que se aproxima mais e porque a corrente não o deixa ir mais longe.

Conseguiu soltar-se três vezes e para nossa felicidade, dele e minha, os nossos olhares encontraram-se, eu do lado de cá do muro e ele do lado de lá. Tinha sede e sabia que a água vinha de uma mangueira que tentava desesperadamente fazer com que vertesse. Assim, em repuxo e com a mangueira do nosso lado fiz refrescar o casaco de peles do animal, nos 38 graus desse dia de Verão.
Feliz esteve.
Mas por ter fugido da prisão, a pena aplicada é agora uma corrente nova, três vezes mais grossa do que a anterior.

Oiço o arrastar pesado.

Uiva e chora em constante desespero para ele e para nós, que já tentámos fazer perceber aos donos, da punição que estão a dar ao animal.

Nasceu este animal e tantos outros que estão nas mesmas circunstâncias ou piores, para quê? Para se saber que ali existe um cão?

Com o 25 de Abril, os homens das grilhetas foram finalmente libertados.
Quando será então o 25 de Abril para os animais em Portugal?

Inez Andrade Paes

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

ESPECTRO



estás
por trás
ao pé
quase a tocar
a uma



rosa


Inez Andrade Paes

segunda-feira, 3 de setembro de 2012


as vacas gritam

com os ubres cheios de leite
ninguém lhes liga
ninguém lhes liga

chamam com mugidos ritmados
ninguém as acode
as acode e limpa

daquele leite que as obriga
para o comercio constante

ninguém as limpa
ninguém as acode
tudo as obriga

são homens de vara que nunca pariram
são homens que tiram sua simples vida

apenas querem um pasto verdejante

ninguém as acode tudo as obriga
ao curral fechado
sem luz sem prado verde
e o leite como elas empacotado
e elas estampadas com sorriso lindo
ao sonho dos homens que são da cidade

vou viver no campo
comprar uma vaca
correr com ela entre flores diversas
e dormir por cima do curral asseado
com o respirar a embalar o sono
o bafo quente a aquecer-me a cama

  Inez Andrade Paes